segunda-feira, 14 de maio de 2018

Reflexão para a solenidade da ascensão do Senhor-Marcos ( 16,15-20)



No domingo em que celebramos a solenidade da ascensão do Senhor, a liturgia oferece, neste ano B, o texto evangélico de Marcos 16,15-20, para nossa reflexão e meditação. A solenidade da ascensão marca a consumação da ressurreição: o Ressuscitado penetra no mundo do Pai, conferindo à sua comunidade de seguidores e seguidoras a continuidade da sua obra, enviando-a a proclamar o Evangelho, notícia boa e maravilhosa, à toda a criação. O texto confere a responsabilidade da comunidade cristã para que, mesmo na convivência eterna do Pai, o Ressuscitado continue presente no mundo através dos seus seguidores. Embora de grande riqueza teológico-eclesial, o texto carrega em si alguns problemas de caráter redacional.

É praticamente unanimidade entre os estudiosos que o evangelho original de Marcos termina em Mc 16,8, e os versículos seguintes, de 9 a 20, foram acrescentados posteriormente, já após algumas décadas. Dois motivos principais contribuem para essa teoria; o primeiro é a mudança de estilo literário entre esses versículos e o restante do evangelho; o segundo motivo é a ausência desses versículos nos manuscritos mais antigos desse evangelho, os códigos Vaticano e Sinaítico. Como 16,8 termina dizendo que naquele primeiro dia semana “as mulheres fugiram do túmulo com medo”, a comunidade completou o texto, colhendo informações dos outros evangelhos, dando uma conclusão menos angustiante ao evangelho. De fato, nos versículos de 9 a 20, podemos encontrar uma espécie de síntese dos relatos de aparição dos outros três evangelhos: referência aos discípulos de Emaús (cf. v. 12), típico de Lucas; menção à incredulidade (cf. v. 14), típico de João, e o envio missionário universal (v. 15), característico da conclusão de Mateus. O acréscimo desses versículos, portanto, serviu para apagar, em partes, a impressão de incompletude no Evangelho segundo Marcos.

Uma vez contextualizado, olhemos para o texto que nos é oferecido:“Naquele tempo, Jesus se manifestou aos onze discípulos, e disse-lhes: Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!” (v. 15). Lendo o versículo anterior, sabemos que foi na mesa, durante a refeição, que Jesus se manifestou (cf. v. 14). A comunidade se encontrava fechada, amedrontada e incrédula. A presença do Ressuscitado impulsiona, provoca abertura de perspectiva e compromisso. As palavras são claramente de um envio universal. A novidade é que não são apenas os seres humanos os destinatários do Evangelho, mas a criação inteira: toda criatura. Como boa notícia, o Evangelho, anunciado e vivido fielmente pela comunidade cristã, comporta uma forma de vida totalmente nova em relação à todas as experiências até então praticadas, propondo uma relação harmoniosa com a criação inteira, e não apenas com os seres humanos.

Como obra de Deus, toda a criação precisa ser revestida do amor do Pai revelado em Jesus, a essência do Evangelho, uma vez que o mal presente no mundo atinge a criação inteira. De fato, Paulo já tinha se dado conta dessa realidade: “a criação inteira e sofre como em dores de parto” (Rm 8,22). Somente o amor do Pai revelado em Jesus, vivido e transmitido pela comunidade de seus seguidores e seguidoras, pode restaurar a criação. Por isso, é urgente que todas as criaturas sejam revestidas de amor e conheçam a forma de vida que o Evangelho propõe.

O Evangelho é dom gratuito, não uma doutrina a ser imposta; por isso, pode ser aceito ou não. O anúncio cristão só é autêntico se respeitar a liberdade dos destinatários. Como toda escolha tem consequências, assim também é a adesão ao Evangelho: “Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado” (v. 16). Crer, aqui, é aderir, dar adesão a uma proposta de vida, é aceitar o amor de Jesus e deixar-se envolver por ele, e não simplesmente repetir fórmulas. A aceitação do Evangelho é seguida pelo batismo, sinal dessa adesão e de comunhão com a comunidade. Quem faz essa experiência, será salvo, ou seja, terá sua vida ressignificada, plenificada e cheia de sentido, já não mais vulnerável aos efeitos da morte.

Não crer, ou seja, rejeitar o amor de Jesus também traz consequências. O texto diz que “aquele que não crer será condenado”, mas não diz que é Deus quem condena porque, sendo essencialmente amor, ele não condena ninguém. É o próprio ser humano que se auto condena quando não aceita o amor como regra de vida. É condenado, portanto, quem não consegue dar sentido à sua existência, e isso é perder a vida. Fechar-se ao amor de Deus é deixar de viver plenamente.

Quem aceita a proposta de amor contida no Evangelho tem a vida transformada, não como passe de mágica, mas como forma de viver e compreender as coisas. Por isso, Jesus elenca alguns sinais: “Os sinais que acompanharão aqueles que crerem serão estes: expulsarão demônios em meu nome, falarão novas línguas, se pegarem em serpentes ou beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal algum; quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados” (vv. 17-18). Antes de tudo, é importante recordar que os sinais elencados não são dons conferidos aos anunciadores, mas aos que crêem, ou seja, Jesus não está dotando os seus discípulos de dons extraordinários, mas comprometendo-os: o anúncio deve ser transformador de vidas. Por expulsar demônios, entende-se a eliminação do mal do mundo; não se trata de ritos de exorcismos, mas de compromisso com o bem. Quem adere ao Evangelho elimina o mal da sua vida e da vida do seu próximo. O antídoto ao mal é o amor. Falar novas línguas significa a abertura ao universalismo da salvação e a convivência fraterna das diversas culturas em torno do Evangelho. O amor quebra barreiras e abre perspectivas sem impor nada.

Na sequência dos sinais que devem acompanhar aqueles que crerem no Evangelho, percebemos uma releitura da descrição profética dos tempos messiânicos em Isaías (cf. Is 11,1-19): um mundo completamente harmônico, com todas as criaturas convivendo entre si sem nenhuma causar dano ao outro. O sonho de um mundo novo inspirava a criatividade dos profetas para descrever a realidade imaginada e desejada. Com imagens tão interpelantes, o texto quer ressaltar a força transformadora do Evangelho e mostrar que, tanto o anúncio quanto a adesão a esse, implicam em compromisso transformador de vidas e situações.

Com uma imagem típica de entronização, o autor narra a ascensão propriamente dita: “Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (v. 19). Sentar-se à direita significa uma posição de honra. Essa imagem era muito usada nas cortes do antigo Oriente, influenciando bastante a literatura bíblica. Aqui, significa que Jesus cumpriu fielmente a sua missão de revelar, com palavras e ações, o rosto amoroso do Pai. Ao invés de suscitar sentimentos de triunfalismos nos seus seguidores, essa imagem deve gerar compromisso: tendo retornado ao Pai, cabe agora aos discípulos e discípulas a missão de irradiar o seu amor no mundo. Inclusive, o autor do texto deixa muito claro isso, com o versículo conclusivo: “Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que o acompanhavam” (v. 20a).  A resposta da comunidade ao retorno de Jesus ao Pai não é a contemplação com espera passiva pela sua segunda vinda, mas a missão: Jesus sobe ao céu, e os discípulos saem por toda parte. A missão de Jesus, portanto, não se conclui com a ascensão, mas ganha com ela novos aspectos e dimensões; ela deve continuar através dos discípulos, e o texto atesta como as primeiras gerações de cristãos e cristãs levaram a sério esse mandato.

Quando a comunidade assume a missão, ela nunca está sozinha, o Senhor está presente. O anúncio, se autêntico, deixa marcas, transforma as situações. Os sinais concretos que devem marcar o anúncio não são condições para despertar a fé, mas consequência: “O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v. 20b). Os sinais apenas confirmavam o anúncio. Esses sinais são os frutos de amor gerados: a justiça, a fraternidade, a aceitação das diferenças, o acolhimento, a solidariedade, a tolerância.

O Ressuscitado está presente onde o Evangelho é anunciado, vivido e produz frutos de amor! Os sinais são consequências da força indescritível do amor; é essa a energia vital de qualquer comunidade cristã; amor que aumenta à medida em que é experimentado.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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