quinta-feira, 29 de junho de 2017

Como os novos movimentos e as novas comunidades estão mudando a Igreja?


Ao longo do papado moderno e especialmente a partir de João Paulo II, o domingo de Pentecostes praticamente se tornou a festa dos novos movimentos eclesiais, como Focolares, Comunhão e Libertação e a Comunidade de Sant’Egidio. Na primeira semana de junho, Roma foi “invadida” por pessoas de todo o mundo participando do quinquagésimo aniversário da Renovação Carismática Católica. O Papa Francisco presidiu a vigília de oração ecumênica no Circo Massimo no sábado, 3 de junho, e celebrou a missa com eles no domingo, na Basílica de São Pedro. Em sua homilia, Francisco repetiu a mensagem antissectária transmitida a todos os movimentos católicos que conheceu durante seu pontificado: abraçar a unidade na diversidade e resistir à tentação de focar nas diferenças, ser “uma parte do todo, pertencer a algum grupo antes de pertencer à Igreja” ou adotar “posições rígidas e estanques”.
Isso vai ao encontro da implementação do “chamado universal à santidade” do Vaticano II; no entanto, Francisco difere de seus antecessores imediatos no tratamento dos novos movimentos eclesiais. Especificamente, sua “eclesiologia do povo” não acredita em qualquer forma de elitismo na Igreja, incluindo o dos grupos que se tornaram parte do catolicismo de forma mais proeminente desde meados do século XX e principalmente depois do Vaticano II.
Apesar de seu relacionamento relativamente distante de tais movimentos, Francisco conhece bem essa nova face do catolicismo global. (Sua mais recente nomeação curial é representativa disso: o novo secretário do recentemente criado [2016] Dicastério para os leigos, a família e a vida é um padre brasileiro, Pe. Alexandre Awi Mello, diretor do novo movimento eclesial Schönstatt do país.) Estes grupos desempenham um papel importante na sua eclesiologia missionária: com exceção das instruções sobre a conservação das cinzas em caso de cremação, o único documento publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé no pontificado de Francisco é Iuvenescit Ecclesia (16 de maio de 2016), uma carta sobre a relação entre bispos e igrejas territoriais de um lado e novos grupos e movimentos eclesiais, de outro.
Francisco percebe que o próprio Papa pode não conseguir impedir as mudanças provocadas pelos novos movimentos eclesiais na Igreja – particularmente na relação entre leigos e religiosos. Um breve comunicado de imprensa relatou, na semana passada, um encontro entre o Papa e os presidentes dos dicastérios curiais para discutir a questão dos sacerdotes nos novos movimentos eclesiais e, especificamente, a possibilidade de “incardinação” dentro de suas fraternidades sacerdotais. Isso representaria uma mudança significativa, porque até agora apenas as prelaturas pessoais (como o Opus Dei) e as ordinariados (como as ordinarios militares e o Ordinariato Pessoal de Nossa Senhora de Walsingham, criadas em 2009 para apoiar a “reunião” dos antigos anglicanos com a Igreja Católica Romana) tiveram esse privilégio.
Essas novas fraternidades sacerdotais têm certa variação. Algumas são partes bem estabelecidas de grupos amplamente conhecidos, como Sant’Egidio, Comunhão e Libertação e o Caminho Neocatecumenal. Outras foram iniciadas por bispos locais para criar paróquias doutrinárias e litúrgicas “ortodoxas”, como a Fraternidade Sacerdotal Familia Christi, na minha diocese italiana de Ferrara.
Esta fonte de novos sacerdotes poderia ajudar a aliviar a falta de religiosos, mas também traz outros ‘problemas’.
Os sacerdotes incardinados nos novos movimentos eclesiais não estariam submetidos aos ordinários locais, isto é, aos bispos diocesanos. Para o Vaticano, isso significa reconhecer algo sobre como esses movimentos evoluíram desde o Vaticano II. Na verdade, eles estavam encarregados de ajudar a renovar os leigos. Mas com a redução substancial no número de sacerdotes diocesanos e de ordens religiosas em todo o mundo ao longo das últimas três décadas, eles parecem ter se tornado fonte de novos sacerdotes. Embora isso possa ajudar a aliviar a falta de religiosos a curto prazo, também pode trazer novos problemas.
A questão não é ideológica, pois existe uma grande diversidade entre essas fraternidades: seminaristas e sacerdotes de Sant’Egidio, por exemplo, são mais “conciliadores” e ecumênicos do que os da Comunhão e Libertação e do Caminho Neocatecumenal. Pelo contrário, é estrutural: para substituir ou reabastecer os seminários e as paróquias diocesanas com poucos religiosos, as “Igrejas territoriais” – os bispos, incluindo o bispo de Roma – estão sendo consideradas vocações sacerdotais provenientes de organizações “não-territoriais”: os movimentos.
A partir disso, levantam-se quatro considerações interessantes.
A primeira é a política da Igreja: os movimentos não são, aos olhos de Francisco, as “elites” especiais da nova evangelização, como eram nos papados de João Paulo II e Bento XVI. Ao percebê-las, Francisco critica explicitamente qualquer tendência sectária. Mas o próprio Papa entende que esses movimentos estão produzindo sacerdotes novos e muito necessários em uma Igreja Católica que ainda precisa que o clero funcione. Nesse sentido, a mudança, se aprovada, sinaliza que a Igreja considera muito mais fácil mudar o relacionamento entre a dimensão territorial e pessoal na Igreja do que ordenar homens casados (“viri probati“) ou mulheres diáconas ao sacerdócio.
Além disso, há a consideração eclesiológica. Inverter a relação entre o territorial ou dimensão geográfica dos agregados da Igreja (paróquia, diocese) à dimensão pessoal (pertencer a um grupo que não se define por localização geográfica) derrubaria um sistema que remonta aos primeiros séculos do cristianismo (as dioceses eram sucessoras das províncias do Império Romano) e que se solidificou no segundo milênio, especialmente pelo Concílio de Trento (1545-1563). Também representaria um desafio para o conceito eclesial da Igreja local em diálogo e tensão com a universal.
A terceira consideração é teológica. A própria ideia de “aculturação” da mensagem cristã está ligada à eclesiologia da Igreja local. Resta saber o tipo de que os sacerdotes dos novos movimentos receberiam formação (e onde essa formação aconteceria), e se eles seriam sacerdotes de toda a Igreja (incluindo as “periferias” de Francisco) ou apenas do seu movimento. Esta questão foi levantada por João Paulo II na exortação apostólica Pastores Dabo Vobis (1992), na carta apostólica Tertio Millennio Adveniente (1994) e na exortação apostólica Vita Consecrata (1996). A relação entre alguns movimentos e as igrejas locais tem sido, em muitos casos, pouco colaborativa. Por exemplo, bispos locais vem reclamando a Roma sobre o modus operandi do Caminho Neocatecumenal em suas próprias dioceses e até mesmo a nível nacional.
Finalmente, há uma consideração histórica. Em 1513, antes do Concílio de Trento e da Reforma, os monges venezianos Camaldulenses Paolo Giustiniani e Pietro Querini apresentaram ao Papa Leão X Libellus ad Leonem X, as propostas de reforma mais importantes do período pré-reforma. Giustiniani e Querini propuseram, entre outras coisas, uma redução radical no número de ordens religiosas (com apenas três tipologias de regras para a vida religiosa: agostiniana, beneditina e mendicante) e uma Igreja mais centralizada e reformista sob a liderança do Papa e dos bispos. Mas o que aconteceu depois do Concílio foi exatamente o oposto: uma proliferação de novas ordens religiosas (Capuchinhos, Barnabitas, Jesuítas, etc.).
Algo semelhante aconteceu depois do Vaticano II, que vislumbrava uma Igreja Católica sob a liderança dos bispos e do Papa e menos autonomia para as ordens religiosas e estruturas pessoais e não-territoriais da Igreja. Em vez disso, houve uma crise no episcopado – os bispos agora são mais diretores do que pastores; eles são chamados a agir em conjunto com o Papa e em sinodalidade com o seu rebanho e têm uma idade fixa de 75 anos para se aposentar – e houve mudanças nas expectativas de trabalho em conjunto com um papado bem-sucedido. Isso vem com a expansão de grupos e movimentos eclesiais ligados a “comunidades intencionais” que reivindicam – e obtêm – autonomia de ordinários locais. Isso tudo poderia ser mais um exemplo de como o corpo vivo da Igreja desfaz os projetos de reforma mais bem intencionados e bem pensados por teólogos “iluminados”.
Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Universidade Villanova, em artigo publicado por Commonweal.
Fonte: Blog do Carmadelio

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